Textão

Se Frida Kahlo usasse o Instagram: será que curtiríamos suas obras?

27/09/2017

Mais imagética entre as redes sociais de sucesso, o Instagram está cheio de artistas contemporâneos que compartilham seus trabalhos, processo criativo e referências. Uma chance de aproximação até há pouco tempo inédita entre quem cria e quem ama arte.

Mas a mais imagética entre as redes sociais de sucesso também está impregnada de uma estética da felicidade da qual é difícil se livrar. A quase inexistência de sombras (no sentido conotativo e denotativo) nas fotos, as flores e folhagens, as legendas no diminutivo fazem parte da cultura do aspiracional. Seja lá o que você aspire ser, há perfis no Instagram para mostrar que é possível, é até fácil, se você quer, você consegue.

Até então, parece não haver nenhum problema. Quem quer mostrar o caminho para um abdômen, look do dia ou arranjo floral perfeito tem uma conta, o artista tem outra conta, milhões de seguidores se dividem de acordo com suas preferências. Sem drama. Pensando melhor, porém, existe um problema, sim. É que a estética da felicidade eterna, da gentileza, da leveza, da gratidão e do café quentinho é a mais certeira para atrair likes. E lá está o artista (vamos imaginar uma pintora) criando e compartilhando suas obras.  Sua chance de ter likes será tão maior quanto mais alegria, afeto e amorzinho tiver em suas imagens. Mas a arte não é, necessariamente, feita de coisas boas e inspiradoras.

Vamos pensar em Frida Kahlo. E se ela tivesse um perfil no Instagram? Sua criação, como a de tantos artistas, era feita (também) de dor. Coração partido pelas traições de Diego e o rompimento dos dois, dores físicas pela coluna acidentada e a perna defeituosa, saudade de casa, nas temporadas que passou na França e nos Estados Unidos, desalento pelo aborto e por não ser capaz de gerar um outro bebê. Uma vida e obra que não renegava os tons mais escuros. A sombra que empresta profundidade e nuances a uma pintura.  Um coração partido, por mais incômodo que seja, tem seu valor. Não apenas artístico. Numa de suas cartas, Frida escreveu: “Sofrer sempre serve para alguma coisa”.

Claro, a obra de Frida também reflete momentos de felicidade: o amor pelo próprio país e pelo povo, que ela quis conhecer e com o qual se identificou, cada vez mais, ao longo da vida. O relacionamento com Diego, que, mesmo com altos e baixos, durou para sempre. Os bichos de estimação, as flores favoritas, as cores que a encantavam, o Sol e a Lua. A vontade de viver, mesmo doente.

Se ela tivesse um perfil no Instagram, seus autorretratos (selfies?) rodeada de flores tropicais, abraçando araras ou tendo um macaquinho em seu ombro deveriam render muitos likes. Mas e o resto? A imagem de si mesma esfaqueada, depois de descobrir o relacionamento entre seu marido e sua irmã Cristina.  A cama ensanguentada do hospital de Detroit, onde sofreu o aborto. Os traços da coluna despedaçada que lhe causava tanta dor. Difícil imaginar como essas obras, que são algumas das mais importantes de sua carreira, seriam vistas por seguidores com o olhar treinado e sedento por conforto e fofura.

As redes sociais, plataforma sem igual para criadores mostrarem suas obras, representam também uma armadilha. Como é difícil não editar o próprio trabalho para se adequar ao gosto da maioria e ganhar mais uma curtida. A resposta do público nunca foi tão rápida. Postar uma foto e querer que ela seja bem recebida faz parte do desejo humano por aceitação (vale tanto para artistas quanto para dentistas) e tudo bem. Mas que pena um artista deixar sua dor e suas vísceras em busca de mais um like.

Frida pintava em pequenos formatos, numa época em que os muralistas eram as estrelas (Diego incluído). Registrar com a arte a atmosfera política real ou utópica estava em alta na América Latina daqueles dias, mas ela não quis se dedicar ao tema da moda e preferiu continuar pintando aquilo que conhecia melhor, seu mundo interior.  Caso usasse o Instagram, pode ser que Frida mantivesse sua integridade artística, o rastro de sangue e o flerte com o bizarro em suas obras, em vez de se entregar à fofura.  Mas, ao fazer isso, conseguiria mantar o interesse de quem, hoje, diz ser fã de seu trabalho?

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Sabrina Abreu